Serafim, não será
pedir muito?
Numa grande cidade do sul de Portugal, onde os prédios
tocavam o céu e provocavam pequenas feridas no teto do mundo, existia uma
criança que se chamava Serafim. A sua mãe chamava-se Serafina e era costureira
e o seu pai, Nicolau, era um padeiro muito famoso. Quando escreveu a carta ao
Pai Natal, Serafim, não esteve com meias medidas, pediu mais de trinta coisas.
Logo a mãe do rapaz o avisou:
-Espero que compreendas que o Pai Natal transporta as
prendas num trenó puxado a renas e não num camião, desses que cruzam as
estradas da Europa, com as suas buzinas fortes e pneus gigantes.
A mãe referiu ainda que se tornaria impossível guardar
tantas prendas no apartamento. Serafina pediu também ao filho que não fosse
egoísta, ou seja, que pensasse nas outras crianças, uma vez que elas poderiam
ficar sem brinquedos.
- Terás de diminuir, obrigatoriamente, a lista de
presentes. - concluiu a Serafina.
Serafim fez cara feia, amuou, atirou a tijela de leite
para o chão e fechou-se no quarto, batendo a porta.
O pai acordou com o barulho da porta. A mãe ainda
estava perturbada com a reação do filho.
-Ele quer pedir
quase a loja toda e o quarto dele está repleto de brinquedos! – desabafou o
pai. – Quando vivia na minha aldeia, perto de Famalicão, só tive uma prenda
quando fiz dezoito anos.
- E eu só tive prendas quando me casei. O Serafim está
a ser injusto e demasiado ambicioso.
No dia seguinte, na escola, a professora Lola, de olhos
verdes e sorriso mavioso, perguntou a todos os alunos as prendas que tinham
pedido ao Pai Natal:
- Serafim, diz lá, quantas coisas pediste ao Pai
Natal?
- Trinta e cinco, professora- respondeu, orgulhoso.
A professora ouviu e fez silêncio. Quando as aulas
terminaram e todos tinham ido embora, ela disse ao Serafim que não poderia
pedir tanta coisa. Então, Serafim decidiu trocar a carta que tinha escrito,
pedindo apenas vinte coisas.
Os pais continuaram a achar que ele tinha de diminuir
a lista e não concordavam com a atitude de Serafim. O facto de ele ter boas
notas na escola não justificava tamanha ambição.
Os dias para o Natal passavam vagarosamente, como a
neve a cair nas montanhas das aldeias de Trás-os-Montes e das Beiras. Na cidade
a confusão das compras para o Natal aumentava. Rios de gente nos “shoppings”,
nas ruas e nas praças.
Nesse ano, a família não iria a Tondela, na Beira, passar o Natal. Iriam para Trás-os-Montes,
onde as giestas e o frio dominam a paisagem. O Natal seria perto de Miranda do
Douro, a aldeia-natal de Serafina. Serafim era um menino de cidade, caprichoso
e vaidoso e detestava tanto a terra do pai como a da mãe. E estava preocupado
com o facto de ter de transportar as 35 prendas, perdão… 20, de volta para o
sul. Felizmente, o pai tinha uma carrinha grande o que era excelente.
Chegaram a Picote, aldeia do concelho de Miranda no
dia 24 de dezembro e estava um frio de rachar. Os sinos embalavam o espírito de
Natal. Os avós estavam muito velhinhos e toda a aldeia parecia um lar… Eram
primos e mais primos, todos cheios de rugas mas com um sorriso morno e doce. Na
quentura da lareira, o avô contou histórias e histórias e lembrou o tempo em
que o Pai Natal ainda nem sequer tinha nascido.
- Quando era da tua idade, Serafim, as prendas eram
pedidas ao Menino Jesus!
- Como é que um bebé andava de casa em casa? Isso são
tretas, avô.
- Nada disso. Ele vinha acompanhado pelos anjos. Ele
apenas trazia a lista das crianças bem comportadas. E dava-lhes livros para a
escola, pão para comerem, crias para as cabras e ovelhas, neve para brincarem…
- E os brinquedos? Não havia brinquedos?
- Não precisávamos de brinquedos. Brincávamos uns com
os outros. Tínhamos muita neve e atirávamos bolas e fazíamos bonecos.
A avó acrescentou:
- Uma vez um rapaz, o Zé Pisco, pediu ao Menino Jesus
cerca de 20 coisas diferentes. Imaginem que ele foi tão ambicioso que durante
20 anos não nevou em Picote.
- Sério? Não acredito!
- Verdade!- continuou o avô Augusto. – Só quando
nasceu o primeiro filho dele, o Sérgio Pisco, passou a nevar de novo.
O sono foi chegando como estrela que rasga o
firmamento… Serafim, ainda teve tempo de dizer:
- Eu só quero neve como prenda!!! Não quero mais vinte
prendas.
A manhã acordou vestida de branco. A aldeia era toda silêncio.
Os telhados pingavam. As ruelas estavam escorregadias. Nevava com suavidade e
com beleza. Na sala uma caixa enorme de prendas… Serafim acordou e gritou de
alegria por ver a caixa, mas, depois, lembrou-se da história do Zé Pisco.
Preferiu abrir a porta e embriagar-se de branco, correr na neve fofa, e gritar
em liberdade.
- Quem dera que não fossem brinquedos mas roupas para
os velhinhos da aldeia!
No fim de muito brincar, montar um boneco de neve
gigantesco e enregelar as mãos de criança, regressou com muita fome à casa dos
avós. Ouviu a voz firme do pai:
- Ora esta, que vamos fazer com tantos casacos?
António Martins
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